Após uma série de adiamentos, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar na próxima quarta-feira (1/9) o julgamento que pode decidir o futuro das demarcações de Terras Indígenas em todo o país. O Acampamento Luta Pela Vida, que reuniu em Brasília mais de 6 mil indígenas de mais de 170 povos, decidiu seguir mobilizado até a nova data do julgamento. Cerca de mil lideranças seguem acampadas e, por todo o país, comunidades indígenas se manifestam em seus territórios.
No julgamento, o principal ponto em questão é a reafirmação pelos ministros do Supremo da natureza originária do direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam e que o critério constitucional para seu reconhecimento é unicamente o modo de ocupação tradicional, conforme previsto pela Constituição Federal de 1988.
Contra a efetivação deste direito fundamental dos povos indígenas, setores retrógrados do ruralismo e do agronegócio, defendem a aplicabilidade da tese genocida do Marco Temporal, que restringiria o reconhecimento da posse tradicional indígena apenas às terras ocupadas ou disputadas judicialmente até 5 de outubro de 1988, ignorando, e ao mesmo tempo legitimando, o histórico de expulsões e violências sofridas pelos povos indígenas antes da data.
A discussão no STF acontece no processo do Recurso Extraordinário (RE) n.º 1017365/SC que trata da reintegração de posse movida pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina contra a comunidade Xokleng e Guarani da Terra Indígena Ibirama La Klanõ.
O processo teve a repercussão geral reconhecida pela Suprema Corte, que irá definir o estatuto jurídico-constitucional das terras indígenas à luz da Constituição Federal de 1988. Com isso, a tese que for afirmada pelo STF nesse julgamento irá vincular todo o Poder Judiciário, além de irradiar efeitos para os demais poderes da República.
Isso significa que medidas legislativas como, por exemplo, o Projeto de Lei 490, que tramita no Congresso e que pretende, por vias oblíquas, transformar em Lei a tese do marco temporal, podem ser consideradas inconstitucionais pelo STF. O mesmo vale para normativas do Executivo, como o Parecer 001 da Advocacia Geral da União de 2017, utilizado pela Fundação Nacional do Índio para paralisar e anular processos administrativos de demarcação de terras indígenas. O Parecer 001 teve validade suspensa por decisão liminar do Ministro Relator Edson Fachin nos autos do RE n.º 1017365/SC.
Considerando a relevância do julgamento para o futuro dos povos indígenas, o Centro de Trabalho Indigenista – CTI, junto com diversas organizações indígenas e da sociedade civil, foi admitido no processo na qualidade de amigo da corte, cuja função é contribuir com o STF no julgamento do caso.
Comprometido com a defesa dos direitos e da autodeterminação dos povos indígenas ao longo de seus mais de 40 anos de existência, o CTI apresentou sua manifestação no processo, com as razões pelas quais entende que a Suprema Corte deve reafirmar e assegurar o direito originário dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais e declarar a inconstitucionalidade da tese do marco temporal.
Em sua manifestação, o CTI destacou que o direito à terra tradicional se fundamenta na relação de absoluta interdependência que os povos indígenas mantém com seus territórios, imprescindível para a sua sobrevivência não apenas física, mas cultural, salientando que este vinculo vital é expressão dos modos diferenciados com os quais os povos indígenas ocupam e vivem em seus territórios, segundo seus usos e costumes, fazendo emergir seu direito congênito à posse territorial, enquanto povos originário desse país.
Por estas razões, sublinha a manifestação, a Constituição Federal de 1988 reconheceu o direito originário dos povos indígenas a suas terras de ocupação tradicional como cláusula pétrea, elevando-o como direito fundamental e núcleo central de proteção constitucional dos direitos indígenas, vinculando a demarcação das terras indígenas à máxima garantia de vida dos povos indígenas.
A peça destaca o caráter inovador da Constituição Federal de 1988, como resultado das forças democráticas de mobilização de povos indígenas e da sociedade civil organizada, que ao romper com a tutela e a política integracionista, adotou o paradigma da multiculturalidade, consagrando um verdadeiro e especial direito à diferença, expresso no art. 231 e 232, na qual a demarcação das terras indígenas e o conceito de terras tradicionalmente ocupadas adquirem um papel fundamental:
“Evidente, pois, que a vontade do constituinte originário foi estabelecer um conceito de terra indígena que reconhecesse e contemplasse as diversas dimensões que compõem as territorialidades dos povos indígenas, com nítido objetivo de assegurar um território necessário e suficiente não à sua sobrevivência física e cultural, num dado tempo, com data de validade, mas para garantir a manutenção de suas identidades culturais e seus modos de vida, enquanto sociedade diferenciadas, numa perspectiva de permanência orientada para o futuro”, diz trecho da manifestação do CTI.
Neste sentido, o entendimento do CTI corrobora as interpretações de diversos juristas e da jurisprudência majoritária na linha de que o regime constitucional voltado ao reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas, estabeleceu como núcleo central para reconhecimento das terras indígenas o modo de ocupação tradicional, cujos parâmetros para sua caracterização estão delineados no art. 231, §1º, sempre à luz dos usos, costumes e tradições de cada povo indígena.
O CTI defende assim a centralidade da ciência antropológica como meio legítimo para o reconhecimento das terras indígenas e para comprovação dos requisitos constitucionais que caracterizam o modo de ocupação tradicional dos povos indígenas, contando sempre com aportes de outras ciências, e com a imprescindível participação e envolvimento das respectivas comunidades indígenas. Em meio às ameaças que tentam desqualificar a Antropologia enquanto ciência e burlar o procedimento legal consolidado pelo Decreto 1775/96, é fundamental o posicionamento do STF sobre a validade das normativas vigentes, reiterando a legalidade dos estudos que compõem os Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação, principal peça técnica do procedimento administrativo de demarcação.
Portanto, para o CTI, a vontade do constituinte originário foi expressa ao consagrar o modo de ocupação tradicional como núcleo central do conceito constitucional de “terras tradicionalmente ocupadas”, se afigurando inconstitucional a fixação de um marco temporal para o reconhecimento da posse tradicional indígena. Além de sua flagrante inconstitucionalidade, por fixar parâmetro não previsto no texto constitucional, a teoria do marco temporal pretende conferir uma interpretação restritiva dos direitos territoriais indígenas que se presta, em sua finalidade última, legalizar as violências e as expropriações territoriais sofridas pelos povos indígenas. Ao negar aos povos indígenas seus direitos territoriais, acaba-se por impedir e negar-lhes a própria existência física e cultural, face o vínculo indissociável que estes povos possuem com seus territórios.
Em meio à ofensiva aos direitos indígenas oriunda tanto do Poder Executivo como do Poder Legislativo, redobra-se a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal na fixação de uma tese acerca do estatuto jurídico-constitucional das terras indígenas que esteja em consonância com princípios humanistas e pluralistas da Constituição Federal de 1988, reafirmando a natureza originária do direito dos povos indígenas às suas terras de ocupação tradicional, enquanto direito coletivo fundamental vinculados à vida, a dignidade da pessoa humana e ao futuro permanente dos povos indígenas.
Para acessar a manifestação completa protocolada pelo CTI no processo de repercussão geral escreva para contato@dev.trabalhoindigenista.org.br