
Histórico
Desde o ano de 2007 que organizações indígenas e indigenistas que atuam na proteção e garantia dos direitos dos povos indígenas isolados e de recente contato, na fronteira do Brasil e Peru, vêm realizando inúmeras ações para a proteção desses povos e pressionando os governos de ambos os países na integração das suas políticas públicas voltada para os povos indígenas isolados.

A partir do ano de 2014 a Organización de Pueblos Indígenas del Oriente (Orpio), organização indígena do Peru, com o apoio de suas federações, liderou um processo em parceria com a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e com suas organizações de base para promover a proteção e governança das áreas sob atuação dessas organizações onde existe a presença de povos indígenas isolados e de recente contato. É assim que surge a iniciativa do “Corredor Territorial de povos isolados e contato inicial e de florestas contínuas Yavarí-Tapiche”.
Uma área com 16.209.966 hectares na fronteira entre o Brasil (Amazonas e Acre) e o Peru (Loreto e Ucayali). Se situa, de um modo geral, na região ao sul do rio Amazonas, no interflúvio entre o rio Juruá e Ucayali, se estendendo ao sul até a região da Serra do Divisor. Se trata de uma série de territórios contínuos e interrelacionados, habitados desde tempos imemoriais por povos indígenas isolados e de contato recente de maneira ininterrupta, se constituindo na maior extensão de florestas do mundo habitada por esses povos com pouco ou nenhum contato com a sociedade envolvente.
Tal iniciativa recebe o apoio de organizações parceiras do movimento indígena como o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) no Brasil e tem sido apoiada desde o início pela Fundação Rainforest da Noruega (RFN). Foi assim então que em 2021, Orpio e Univaja, elaboraram junto com o CTI e apoio da RFN, o documento com os fundamentos jurídicos, antropológicos e ambientais que demonstram a existência desse corredor. Um documento que conta com os marcos legais nacionais e internacionais que garante a proteção desses povos, detalha a localização e o contexto ambiental e socioeconômico do corredor, os aspectos socioculturais e etnohistóricos e a distribuição dos vários povos indígenas que habitam o âmbito do corredor. Tal documento também trata das categorias legais sobrepostas, as pressões e ameaças que os territórios indígenas do corredor enfrentam bem como os atores que atuam na região e as iniciativas que vem sendo desenvolvida a nível local, regional e binacional para avançar na proteção dos direitos dos povos indígenas isolados e de recente contato além da governança desse imenso corredor territorial.
Os povos indígenas do Corredor
No lado brasileiro do corredor territorial são reconhecimentos oficialmente pela Funai, através da sua Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), pelo menos 17 referências de povos isolados, provavelmente pertencentes as famílias linguísticas Pano e Katukina, sem ser possível estimar o seu tamanho populacional. No lado peruano do corredor são reconhecidos pelo governo desse país os povos indígenas isolados Matsés, Isconahua (Remo), Kapanawa entre outros não identificados.

Três povos de contato recente habitam territórios no âmbito do Corredor Territorial, os Isconahua, no Peru, e os Korubo e os Tyohom-Dyapá no Brasil, totalizando uma população de cerca de 193 pessoas. Os dois primeiros da família linguística Pano e o último da família Katukina.
Além dos povos indígenas isolados e de recente contato o Corredor Territorial abriga em seus limites, do lado brasileiro, três Terras Indígenas (TI) demarcadas, a TI Vale do Javari, a TI Mawetek e a TI Nukini, além de uma área em processo de identificação, a TI Nawa. Se trata dos povos Marubo, Mayuruna/Matses, Matis, Kulina-Pano, Nukini e Nawa da família linguística Pano e os Kanamari da família Katukina, com uma população total de mais de 7.500 pessoas. Do lado peruano são 23 comunidades nativas (nome dado aos territórios indígenas reconhecidos pelo governo desse país) habitada por cerca de seis mil indígenas dos povos Matses, Kapanawa, Shipibo Konibo e Isconahua da família linguística Pano, os Awajun e Wampis da família linguística Jívaro, os Yagua da família Peba-Yagua, os Ashaninka da família Arawak e os Kichwa da família Quéchua Amazônico.
Os territórios indígenas
Territórios indígenas reconhecidos oficialmente pelos respectivos governos de cada um dos países correspondem a 72% da área total do Corredor Territorial Yavarí-Tapiche, sendo 8,7 milhões de hectares de Terras Indígenas no lado brasileiro (54% do total) e 2,9 milhões de hectares de Comunidades Nativas e Reservas Indígenas para Indígenas Isolados no lado peruano (18% do total). No caso das Reservas Indígenas para índios isolados no Peru, há uma quase completa sobreposição com áreas naturais protegidas do corredor.



As áreas naturais protegidas
O Corredor Territorial Yavarí-Tapiche compreende a área, ou parte delas, de seis áreas naturais protegidas, sendo duas no Brasil e quatro no Peru que totalizam cerca de 3,1 milhões de hectares e correspondem a 20% da área total do corredor. No Brasil abarca a totalidade do Parque Nacional da Serra do Divisor e uma pequena parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Cujubim. No Peru envolve a Reserva Nacional Matsés, o Parque Nacional Sierra del Divisor, a Área de Conservación Regional Comunal Tamshiyacu-Tahuayo e a Área de Conservación Regional Alto Tamaya-Abujao. A área do Parque Nacional Sierra del Divisor no Peru se sobrepõe em sua quase totalidade as três Reservas Territoriais criadas para os indígenas isolados no âmbito do corredor: RI Yavarí Tapiche, RI Isconahua e RI Sierra del Divisor Occidental.
Sua biodiversidade
O corredor envolve uma área de especial relevância biológica com altas taxas de biodiversidade. Diversos levantamentos ambientais realizados em várias partes de sua área registraram recordes de diversidade de espécie com populações saudáveis de vários animais que em outros lugares se encontram em risco de extinção. São mais de 150 espécies de mamíferos de pequeno, médio e grande porte, podendo se tratar da zona com a maior diversidade de mamíferos do mundo. Possui uma alta diversidade de primatas, incluindo espécies raras da Amazônia como o uacari-vermelho e o sagui-de goeldi, podendo se tratar da região com a maior diversidade simultânea de primatas em florestas tropicais do mundo.


Possui uma avifauna altamente diversificada, típica da Amazônia ocidental, com mais de 580 espécies de aves, com importantes espécies de aves migratórias além de espécies novas para a ciência.
Sua fauna de peixes é altamente diversa, estimando-se mais de 500 espécies, com pelo menos 22 espécies novas para a ciência. Possui importantes comunidades de peixes ornamentais e um grande número de espécie de importância econômica como o pirarucu, a aruanã e os grandes bagres migratórios.
Em relação aos anfíbios se trata de uma típica localidade hiperdiversa do alto Amazonas com, pelo menos, sete novas espécies para a ciência.


Seu estoque de carbono
O corredor territorial engloba áreas com os maiores estoques de carbono da Amazônia, o transformando em uma área de vital importância para contribuir na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas a nível mundial. Situação que tem levado os povos indígenas habitantes do corredor a serem assediados por empresas dedicadas a comercialização de créditos de carbono e que se aproveitam da falta de informação e da inexistência de uma normatividade e de uma institucionalidade consolidada que regule tais operações garantindo os direitos dos povos indígenas perante contratos altamente desvantajosos para eles.
As ameaças
Apesar do desmatamento na área do Corredor Territorial Yavarí-Tapiche ser baixo, no lado peruano, na sua parte ocidental, a degradação da floresta vem crescendo devido a extração seletiva de madeira legal e ilegal e pela construção de caminhos florestais para a retirada dessas toras de madeira cortada.
Essa extração de madeira é uma situação muito mais grave no lado peruano do corredor onde desde o ano 2000 o governo peruano concessionou vários lotes para a exploração madeireira, muitas deles dentro de territórios de indígenas isolados. Lotes de concessão estes que depois de uma longa luta judicial foram anulados graças ao trabalho da Orpio. No lado brasileiro, a extração de madeira foi a principal atividade econômica no Javari desde os anos de 1920, mas após a demarcação da TI Vale do Javari no início dos anos 2000, essa atividade se tornou ilegal e foi praticamente erradicada. Atualmente a extração de madeira do lado peruano acaba afetando as áreas do Brasil próximas à fronteira com a extração de madeira brasileira que depois é lavada como madeira retirada das concessões no Peru.
Outro vetor importante para o desmatamento na região é a abertura de áreas para o cultivo de coca destinado a abastecer o narcotráfico. Atividade esta que vem se transformando em uma importante ameaça para os povos indígenas isolados, podendo levar ao encontro de narcotraficantes com esses povos. O cultivo de coca também leva as ações do crime organizado para a região expondo todos os povos indígenas do corredor a uma série de violências associadas a essa prática ilegal.
A intenção da abertura de três novas estradas dentro do âmbito do corredor, impulsionadas pelos governos regionais de Loreto e Ucayali no Peru e Acre no Brasil, agravaria essa situação do desmatamento facilitando a extração de madeira, a expansão do cultivo de coca e a invasão dos territórios indígenas. No lado peruano, as estradas de Colônia Angamos a Jenaro Herrera, conectando o rio Javari ao rio Ucayali e a via Orellana ao Hito 80 levam ambas a impactos mais localizados, mas nem por isso menos significativo. Já a estrada ligando Cruzeiro do Sul, no Acre, com Pucallpa, capital do departamento de Ucayali no Peru, provocaria impactos regionais significativos cortando territórios de indígenas isolados reconhecidos pelo governo peruano além de transformar toda a dinâmica econômica e de ocupação da região fronteiriça ao sul do corredor.

Desde a década de 1930, e principalmente na década de 1970, que existe um grande interesse pelo potencial de petróleo e gás das regiões que fazem parte da área do Corredor Territorial Yavarí-Tapiche, tanto no lado brasileiro como no lado peruano. A partir de 2007 uma política agressiva do governo peruano começa a conceder vários lotes de petróleo na Amazônia desse país. Como consequência seis lotes, com uma área total de 1,6 mil hectares, chegaram a serem concessionados pelo governo peruano para pesquisa do seu potencial em áreas dentro dos limites do corredor territorial. A partir de 2012, o lado brasileiro do corredor também começa a ser afetado pelo leilão de lotes para pesquisa e posterior exploração de petróleo em regiões muito próximas aos limites de áreas utilizadas por povos indígenas isolados.
O garimpo legal e ilegal, vem se aproximando no lado brasileiro dos limites do corredor territorial a partir da sua parte nordeste, mas especificamente a partir dos rios Jutaí e afluentes quando na década de 1980 teve início essa atividade na região. Na última década essa atividade começou a se expandir para outras áreas como o rio Jandiatuba. Atividade que pode levar ao encontro dos garimpeiros com os isolados levando a conflito e inclusive com suspeita de um massacre de um grupo de indígenas isolados por garimpeiros no rio Jandiatuba. A atividade de garimpo tem cada vez mais sido incorporada pelo crime organizado e se conectado com rede de garimpo transfronteiriços que atuam também no lado colombiano da região. No lado peruano do corredor o garimpo ilegal tem se aproximado dos limites da Reserva Indígena Isconahua.
As cidades do entorno do Corredor Territorial possuem uma grande demanda por proteína proveniente do consumo de peixes (principalmente pirarucu), carne de caça e bichos-de casco (quelônios aquáticos). Uma grande parte dessa proteína é obtida dentro dos territórios indígenas do Corredor Territorial através da invasão de pescadores e caçadores ilegais. Atividade realizada com base em uma antiga rede de comércio transfronteiriço e que possui uma estimativa de produção de mais de 278 toneladas/ano de carne de caça comercializada nas cidades da região da tríplice fronteira, sendo 60% desse comércio concentrado no lado brasileiro, com a cidade de Benjamin Constant sendo o seu grande centro comercial. Apreensões de canoas com 400 a 700 tracajás capturados para atender essa demanda são recorrentes nos rios da região.
Essas invasões tem experimentado uma escalada de violência nos últimos anos nunca antes vista no lado brasileiro do corredor, com ataques a tiros as bases de proteção etnoambiental da Funai responsáveis pelo controle da entrada e fiscalização da TI Vale do Javari. Violência que culminou com os assassinatos do funcionário da Funai, Maxciel dos Santos Pereira em 2019, e de Bruno Pereira colaborador do movimento indígena e do jornalista inglês Dom Phillips em 2022, todos atuando contra essa máfia de pescadores e caçadores ilegais da região.
Situação que leva a um grave risco de encontro desses pescadores/caçadores com grupos indígenas isolados a medida que estes invasores adentram os territórios desses indígenas podendo levar a conflitos com mortes e transmissão de doenças. Das 16 referência de indígenas isolados reconhecidas pela Funai dentro da TI Vale do Javari, 13 estão em situação de risco de contato e conflito com pescadores e caçadores invasores. A forte pressão exercida por esses pescadores/caçadores sobre os recursos naturais dos territórios dos indígenas isolados também afeta a disponibilidade de fontes de proteína para esses povos podendo levar a uma situação de inseguridade alimentar.
Tentativa de contato forçado com os grupos indígenas isolados que habitam o corredor territorial tem sido constantemente realizada por grupos missionários evangélicos. Missionários estes que muitas vezes invadem ilegalmente os territórios desses povos isolados por um lado e por outro tentam cooptar as comunidades indígenas colindantes com a oferta de bens de consumo e de escolas ocupando espaços que deveriam ser ocupados pelos respectivos estados nacionais.