Lideranças Guarani Mbya falam na Câmara Municipal sobre a situação das Terras Indígenas em São Paulo

maio 21, 2015

Rafael Nakamura

David Martim, Maria Inês Ladeira, Toninho Vespoli, Eduardo Suplicy e Jera Giselda durante debate (Foto: Rafael Nakamura/CTI)

Nesta terça-feira (19/05), representantes das Terras Indígenas (TI) Guarani Mbya do município de São Paulo estiveram presentes no debate “A situação das aldeias indígenas na cidade de São Paulo”, realizado na Câmara Municipal. Além das lideranças Guarani, participaram do debate Maria Inês Ladeira, coordenadora do programa Guarani do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o secretário de Direitos Humanos da cidade de São Paulo, Eduardo Suplicy, e os vereadores do município, Toninho Vespoli (Psol) e Juliana Cardoso (PT). As autoridades locais organizaram o debate para discutir principalmente a reintegração de posse na TI Jaraguá, no momento suspensa pelo Supremo Tribunal Federal que recomendou à 10ª Vara Federal que realize uma audiência de conciliação entre as partes. O debate tratou também da situação da TI Tenondé Porã que, assim como a TI Jaraguá, aguarda publicação da portaria declaratória do Ministério da Justiça para concluir o processo de demarcação.

Antes de iniciar a sessão, na entrada do prédio da Câmara, uma comissão
de crianças Guarani da TI Jaraguá fez um breve ritual com canções tradicionais. A liderança da TI Tenondé Porã, Jera Giselda, iniciou o debate lembrando como era a vida nas aldeias do município anos atrás. “Eu comia mandioca, batata doce, amendoim. Pegava peixes na represa que era limpinha, dava para enxergar embaixo d’água, e hoje isso não é mais possível. As crianças não tinham problemas respiratórios, era difícil os Guarani irem pro hospital”, contou. Seu relato também trouxe lembranças de como era o aprendizado da cultura em um ambiente que permitia a interação com o território. “Eu lembro que quando era criança meu pai falava: ‘Vamos plantar feijão, Jera?’. E depois para colher era uma coisa tão gostosa que só nessa ida a gente aprendia muita coisa”.

Para Jera, a falta de espaço é determinante das dificuldades em se manter a cultura Guarani próximo às grandes cidades. “Hoje a gente só planta o milho para não perder a espécie. Você não pode nem mais dividir, compartilhar nossa comida sagrada com todo mundo porque se todo mundo comer vamos perder a espécie. Então a gente planta só pra guardar a semente e depois plantar de novo para continuar tendo”. Aprovados em abril de 2012 pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), os resultados dos estudos técnicos que reconhecem 15.969 hectares como parte da TI Tenondé Porã aguardam a assinatura do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, sem nenhum impedimento jurídico.

Crianças Guarani cantam e dançam na frente do prédio da Câmara Municipal (Foto: Rafael Nakamura/CTI)

Maria Inês Ladeira, coordenadora do CTI, fez um histórico da luta dos Guarani pela demarcação de suas terras desde o início dos anos 1980, época das primeiras iniciativas para reconhecimentos territoriais no estado de São Paulo quando, já nesse período, se iniciam os conflitos judiciais. “Na década de 1980 o professor Dalmo Dallari atuava como advogado dos Guarani. Nessa época, anterior à Constituição Federal, os índios não tinham assistência nem do Ministério Público Federal, muito menos da FUNAI, então ter o professor Dalmo Dallari, jurista que sempre trabalhou com o conceito de ocupação tradicional e brilhantemente defendeu os índios para garantir sua posse e permanência na área foi uma experiência inesquecível”, lembrou.

A antropóloga conta que, há mais de 30 anos atrás, os Guarani diziam que não queriam “cerca”. “Eles ocupavam a terra de uma forma livre, sem disputar, achavam que isso seria o normal, e que sempre teriam possibilidade de estar formando suas aldeias”. A necessidade veio com o crescimento acelerado das cidades ao redor que foram tomando espaço dos índios. “A gente vê imagens de satélite na terra indígena do Jaraguá e fica claro que houve uma devastação e uma ocupação extrema. Eram áreas de mata que os Guarani usavam para sua sobrevivência, de uma forma totalmente livre e diferente de hoje. Os Guarani se viram obrigados a definir limites, esses estudos de identificação consideraram isso e os Guarani também restringiram seus espaços. Eles não estão delimitando toda a área de sua ocupação tradicional.”

Inês lembrou que os estudos mais recentes e os procedimentos de identificação das TIs Guarani seguiram rigorosamente a Constituição Federal de 1988 para chegar aos atuais limites reconhecidos pela FUNAI. A antropóloga finalizou ressaltando a importância da demarcação como única solução para chegar a um acordo. “A terra é um fator determinante para que esse povo continue existindo. Nunca se chegará numa situação pacífica se não tiver a demarcação. Não existe nenhum impedimento, do ponto de vista jurídico, para que sejam demarcadas as terras e qualquer ato de conciliação deve ser feito após isso. Demarcando a terra indígena, é o governo que vai resolver os outros interesses. No caso de posses de boa fé, pela legislação, pessoas têm o direito de serem indenizadas e reassentadas em outras áreas, cabe ao governo resolver e não jogar esse ônus para os índios”.

O Jaraguá é Guarani

O último a falar na mesa foi David Martim Karai Popygua, liderança da TI Jaraguá. Nos últimos meses os Guarani do Jaraguá iniciaram uma campanha para defender o Tekoa Itakupe. Após uma ordem de reintegração de posse emitida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), a comunidade Guarani do município se manifestou recusando o abandono da área e disposta a resistir com a própria vida no local. A reintegração foi suspensa pelo presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, temporariamente com a indicação de que a 10ª Vara Federal faça uma tentativa de conciliação entre as partes. O senhor Antônio Tito Costa, ex-prefeito de São Bernardo e ex-deputado federal pelo PMDB, é quem reivindica a posse da área dentro da terra indígena. “A terra faz parte da gente. A gente cuida dela como se fosse nosso filho. A única coisa que Nhanderu ensinou pra gente foi cuidar da terra, e é essa terra que o juruá se diz dono”, disse David Martim.

Atualmente, apenas um pequeno pedaço de terra está demarcado para os Guarani no Jaraguá. Trata-se da menor terra indígena do país, reconhecida antes da constituição de 1988 e que, portanto não leva em consideração o espaço necessário para a reprodução física e cultural da comunidade. A revisão desses limites já foi feita em estudo aprovado e publicado pela FUNAI em 2013. O novo estudo reconhece 532 hectares como área de ocupação tradicional na TI Jaraguá, mas há anos aguarda a assinatura do ministro José Eduardo Cardozo para concluir o processo de demarcação. “O que sobrou pros Guarani do Jaraguá foi 1,7 hectare do território sagrado que Nhanderu criou. Hoje a gente tem que lutar para que seja reconhecido nosso direito. Um direito que o próprio juruá criou na lei pra que se respeitasse a importância de preservar essa cultura. Hoje tem uma inversão e somos chamados de invasores no nosso próprio território, somos impedidos de viver dentro da terra sagrada, aquilo que um dia nos foi tomado”, lamentou David.

Apesar da longa espera, a comunidade Guarani se mantém firme em sua luta cotidiana mantendo seus costumes, trabalhando a terra para garantir sustento e ensinando para as crianças o nhandereko (modo de ser Guarani). “A gente vai continuar lutando pra ter um pedacinho de terra pras nossas crianças poderem viver. Pra que um dia a gente possa rezar, pra que a gente possa dormir, plantar, tranquilo, sem ameaça. E pra que um dia também esse Estado respeite a cultura dos povos indígenas”, concluiu David, aplaudido de pé pelos presentes.