Audiência pública na Câmara dos Deputados reuniu parlamentares, lideranças, especialistas e parceiros da sociedade civil para discutir os efeitos da aprovação da proposta em terras indígenas e quilombolas, e traçar estratégias de ação conjunta
Plenária na Câmara dos Deputados debate efeitos nocivos da PEC 215 (Foto: Alan Azevedo/Greenpeace).
Em mais um esforço para conter o avanço da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 no Congresso Nacional, a Frente Parlamentar em Apoio aos Povos Indígenas, juntamente com a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos e a Frente Parlamentar Ambientalista, convocou uma audiência pública para debater as consequências negativas de tal medida para as populações indígenas, comunidades quilombolas e demais povos tradicionais. A plenária, que aconteceu nesta terça-feira (19) na Câmara dos Deputados, reuniu lideranças indígenas, especialistas, representantes quilombolas e de organizações parceiras da sociedade civil, além de parlamentares aliados, na tentativa de definir estratégias conjuntas de ação.
A tônica do debate girou em torno da inconstitucionalidade da PEC e de sua aprovação ser uma afronta direta ao Estado democrático brasileiro. Para o senador João Capiberibe (PSB-AP), alguns deputados são muito interessados em que a democracia não avance no país, “porque isso pressupõe o reconhecimento de direitos”. Ele disse acreditar que a proposta não vai passar na Câmara, mas afirmou que, caso isso aconteça, “temos um grupo no Senado preparado para tentar barrá-la com toda nossa força.”
Coordenadora da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Sonia Guajajara reforçou que a luta dos povos indígenas e tradicionais sempre teve como princípio a pluralidade, o diálogo, o coletivo. “Nossa luta não é individual, é para todos. Queremos mostrar o quanto essa PEC é ofensiva, é letal e rompe com a democracia no Brasil. Essa que se diz a “Casa do povo”, sempre nos impõe dificuldades para entrar, nos olham com desconfiança, com medo. Então, é difícil para nós compreender que democracia é essa. Mas quando a nossa presença chega aqui, colore essa Casa e a democracia de fato se faz.”
Marcio Santilli, sócio fundador do ISA (Instituto Socioambiental), mostrou que os números muitas vezes falam mais do que palavras. “Temos hoje 1611 processos abertos para titulação de terras quilombolas no país. Destes, apenas 154 títulos foram emitidos. Ou seja, menos de 10% da demanda foi atendida. Com relação às terras indígenas, temos 227 processos em fase de identificação ou já identificados, mas que ainda não receberam o decreto de homologação presidencial. Isso afeta praticamente 100 mil indígenas e equivale a uma área com 7.7 milhões de hectares ainda sem decisão definitiva com relação ao processo demarcatório. Além disso, todas as 698 TIs hoje já reconhecidas no país também estariam em risco com a provação da PEC 215. Esses dados nos dão a dimensão concreta do problema”, concluiu.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) também marcou presença no evento, reforçando o conflito constitucional que seria a aprovação da proposta. “Deslocamentos de competência na Constituição só devem acontecer para dar maior ênfase aos direitos garantidos nessa mesma Constituição. Mas nesse caso, a PEC não contempla o direito fundamental dos povos indígenas, ao contrário, faz prevalecer o discurso do mercado e da centralidade econômica. A preocupação da Anamatra é que estamos caminhando para um país desértico, infértil, sem diversidade sociocultural e que não reconhece suas diferenças.”
Para a academia, representada na pessoa de Antônio Carlos de Souza Lima, presidente da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), o direito originário à terra significa o reconhecimento ao direito vital dessas populações. “Transferir o debate acerca da demarcação das terras indígenas para o Congresso Nacional é trazer o direito originário desses povos para o terreno de negociação. Mas a vida não se barganha”, afirmou.
‘Que as demandas indígenas ecoem como os maracás desse Brasil’
Já a deputada Janete Capiberibe (PSB-AP) foi categórica ao dizer que algumas propostas que encontram eco no Parlamento hoje são resquícios da ditadura militar e/ou cobranças das faturas de financiamento de campanha. “A Friboi, por exemplo, elegeu para essa casa 160 deputados federais. Será que esses deputados vão defender o meio ambiente, as terras indígenas? Não. Vão defender a pátria do boi em cima dessas terras. Essa Casa tem que honrar o direito garantido desses povos aqui presentes. Tem que fazer ecoar [suas demandas] como o fazem os maracás desse Brasil.”
O coordenador nacional da Conaq (Coordenação Nacional das Comunidades Quilomoblas), Denildo Rodrigues, o Bico, foi ao encontro da fala da deputada e se referiu à Câmara dos Deputados por analogia: “Quando olhamos pra essa Casa vemos o espelho das grandes corporações, pois eles defendem os interesses dessas empresas, não da população brasileira.”
No meio da plenária, a deputada Erika Kokay (PT-DF), que estava presidindo a mesa, avisou que a segurança da Casa estava condicionando a entrada de 15 indígenas que haviam ficado do lado de fora à saída de outros 15. “Mas nós solicitamos que eles entrem sem ninguém sair, porque cabemos todos aqui. Afinal, no Brasil tem que caber todo mundo”, frisou. Os indígenas conseguiram entrar e acompanhar o final da audiência. Ao fim da plenária foi elaborado um Manifesto, assinado pelas entidades presentes.