Integra do discurso de Sonia Bone Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, na sessão de julgamento do caso Aikewara-Suruí no âmbito da Comissão da Anistia
O dia de hoje é histórico para a relação do Estado Brasileiro com os povos indígenas. O povo aikewara solicitou o reconhecimento do Estado, através desta Comissão da Anistia, em relação às atrocidades cometidas contra eles pelo Exército no contexto da repressão à guerrilha do Araguaia. É uma chance única que o Estado brasileiro tem de pedir perdão a um povo indígena pelas barbaridades que ocorreram em uma fase crítica do período de colonização, que foi a Ditadura Militar. É um caso único, importante, e trágico na sua particularidade pelo sofrimento que passaram os parentes aikewara, e que só eles podem saber o que foi.
Mas também é um caso emblemático, pois, através dele, abre-se uma nova perspectiva para que o Estado Brasileiro peça perdão aos povos indígenas de todo o país por todas as barbaridades que a colonização de nossos territórios tem significado para nossos parentes, nossas crianças, nosso passado e nosso futuro. Sempre se fala em dívida histórica com os povos indígenas, como algo de um passado distante. Poucos percebem que o genocídio dos povos indígenas segue se repetindo e que a construção de uma nação democrática depende de uma justiça de transição ampla para com os povos originários dessa terra, alvos da opressão primeira, que deu origem a essa nação.Enquanto não houver esse reconhecimento, a violação histórica é continuada.
O que os aikewara pedem hoje é o reconhecimento do Estado, e a reparação pelo que passaram, mesmo sabendo que a violência e o terror a que foram submetidos seja irreparável. A reparação individual de cada um dos parentes que abriram processo de anistia está ao alcance imediato desta Comissão. E a reparação coletiva que eles solicitam, que é a devolução de sua terra tradicional, está ao alcance do Estado Brasileiro. Esperamos que hoje seja feito o primeiro gesto de retratação com esse povo, abrindo caminho para um gesto mais amplo.
Assim como muitos perderam suas vidas na luta contra a ditadura, ou pior, desapareceram sem que nem ao menos seus parentes pudessem velar seus corpos, ainda hoje, na luta pela terra, muitos dos meus parentes indígenas continuam sendo assassinados. Os parentes guarani-kaiowa seguem, por exemplo, sem poder velar o corpo do cacique Nísio Gomes, morto em 2011, e que nunca foi localizado.
O caso dos parentes aikewara é apenas um dentre os muitos povos indígenas que buscam reconhecimento e reparação em relação às atrocidades da Ditadura e da colonização. O caso de Nísio Gomes e dos Guarani Kaiowa é um dentre os muitos parentes que sofrem pelo efeito continuado do desaparecimento de corpos. Nossas terras tradicionais também são corpos para nós, e muitas delas permanecem sequestradas.
Esperamos que hoje o conceito de justiça de transição, que orienta essa Comissão, se acrescente de um novo significado para o Brasil. Um Estado Democrático verdadeiro não pode ser um Estado Colonialista. A transição democrática precisa da descolonização da relação com os povos originários desta nação, processo que é permanente. Que o povo aikewara possa ter sua verdade reconhecida, e que isso abra caminho para a justiça com todos os nossos parentes.