A Advocacia Geral e o Patrimônio da União

out 17, 2013

Por Daniel Pierri e Gilberto Azanha

Noticiou o jornal Estado de São Paulo na semana passada que a presidenta Dilma Rousseff “quer o socorro do Supremo Tribunal Federal para evitar novos conflitos entre índios e fazendeiros”. Para entender a situação, cabe uma declaração do novo ministro do STF, Luis Roberto Barroso: o STF só adentra no domínio do Executivo ou do Judiciário quando esses são omissos, ou quando agem flagrantemente contra a Constituição. Dilma quer ajuda porque sabe que no que concerne à questão indígena, seu governo, além de omisso, editou por interesse dos ruralistas, uma medida flagrantemente inconstitucional que está na base dos últimos conflitos que resultaram na morte de Oziel Terena. Nos referimos à Portaria 303, de lavra do Advogado Geral da União, Luis Inácio Adams.

O objetivo da norma era supostamente o de “regular os os procedimentos admnistrativos para a demarcação de terras indígenas”, com base em condicionantes estabelecidos pelos STF visando a execução da decisão proferida a respeito da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, na PET 3388, que, diga-se de passagem, confirmava o direito dos índios e determinava a saída dos fazendeiros. O que a Portaria 303 pretendia fazer, na prática, era transformar condicionantes que baseavam-se em um caso concreto em limitadores para quaisquer demarcações e, pior, como baliza para a revisão de processos de demarcação já realizados pelos governo, como é o caso da TI Buriti, onde incide a fazenda em Sidrolância, palco dos últimos conflitos.

À época da edição da Portaria 303, a reação dos índios em todo o país foi tanta que só não resultou em um conflito semelhante a esse último porque o Governo recuou, e suspendeu a Portaria, reconhecendo que nem mesmo o STF havia finalizado o julgamento da PET 3388, por faltarem ainda embargos declaratórios a analisar. Embora os ruralistas defendam a medida, o próprio Ministro Ayres Britto, relator da PET 3388/RR, recebeu com extremo espanto a leitura equivocada que a Portaria 303 faz dos condicionantes que, segundo suas próprias palavras, “foram fixados tendo vista exclusivamente as características da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”. Para o Ministro, a “portaria 303 foi um equívoco porque resolveu generalizar condicionantes que visaram apenas dar efetividade prática à execução da decisão da Raposa”, gerando insegurança jurídica e conflitos. A manifestação de Britto foi proferida durante uma reunião com a bancada indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), na qual o Ministro apontou a necessidade de julgamento imediato dos “embargos de declaração opostos à PET 3388”, que segundo o ele, poderiam “restaurar a pureza de seu voto”, afastando interpretações errôneas a respeito da decisão da PET 3388/RR. Britto, então presidente do STF, aposentou-se compulsóriamente logo depois, e a PET ficou sem relator, e não pode ainda voltar à apreciação do plenário da casa.

Dentre todas as cláusulas que o próprio Ayres Britto disse aos índios serem inconstitucionais, acreditamos que uma deles é a mais nociva e está na raiz dos conflitos ora em pauta. Pretendia-se com a Portaria 303 pelo seu artigo 3º que todos “procedimentos finalizados serão revisados e adequados a presente Portaria”. Ou seja, nem aquelas terras já demarcadas estariam à salvo da prescrutação de Adams, e povos indígenas que há anos vivem em paz nas terras que à custa de muita luta viram suas terras demarcadas poderiam ter seu direito revisto, de acordo com a interpretação do chefe da AGU. Não espanta, portanto, que os fazendeiros das áreas que incidem na TI Buriti tenham entrado com ação de “danos morais e materiais” conta a União. Se a União resolve (ilegalmente!) voltar atrás em atos que ela mesmo realizou em respeito ao direito constitucional dos índios, imaginem a avalanche de ações judiciais de fazendeiros e antigos posseiros que buscariam indenização por terem sido retirados das terras, ou mesmo por terem tido gastos com a sua defesa judicial? O recurso que poderia estar sendo gasto na resolução dos conflitos, passaria a ser destinado à produção de novos conflitos.

Quando a Advocacia Geral da União titubeia em defender judicialmente um ato constitucional de lavra da própria União, como o reconhecimento da Terra Indígena Buriti, o único efeito disso é o acirramento dos conflitos, como ocorreu. Ao invés de correr ao STF, esperando que ele revogue a Portaria 303, pela sua flagrante inconstitucionalidade, e poupe o governo do ônus político de desagradar aos ruralistas, a Presidenta deveria tomar as rédeas da situação e fazê-lo ela mesma. Revogar definitivamente a Portaria 303 é fundamental para o cessar dos conflitos que podem se acirrar ainda mais em todo o país, e se preciso for para isso enfrentar o desastrado Advogado Geral da União, a presidenta devia fazê-lo. Por sorte, na vaga de Ayres Britto no STF assume o reputado constitucionalista Luis Roberto Barroso, que não se furtou em apontar durante a sabatina no Senado a sua interpretação sobre os condicionantes da PET 3388: “valem apenas para o caso concreto da Raposa Serra do Sol, o Supremo não tem competência normativa para disciplinar ad futurum, quando vão ser feitas as demarcações”. Em outras palavras, a interpretação da Portaria 303 é inconstitucional, como sabe o Governo, e reconhecerá o STF caso os demais ministros não se empenham em conspirar contra a Carta Magna. O mesmo juízo foi o que motivou hoje a derrubada da liminar que determinava a reintegração de posse da fazenda em Sidrolândia,  que já havia sido precedida por três outros casos iguais na mesma terra indígena, além de decisões semelhantes favoráveis aos índios que incidiram outras TIs no MS ainda em processo de identificação.

Todos sabem, e mesmo muitos fazendeiros afirmam, que a criação de instrumentos para a mediação dos conflitos é viável e está nas mãos da União. Basta que a União reconheça que o Governo é o responsável histórico pela emissão de títulos inválidos sobre terras indígenas, e que vai indenizar ocupantes dotados de títulos de boa-fé pelos danos frutos desse erro, que o respeito aos direitos dos índios e o daqueles proprietários legítimos seria respeitado. Como explica o procurador Marco Antônio Delfino, há inclusive um parecer do Ministério da Justiça que fundamenta essa decisão, engavetado até hoje por falta de interesse político. Se o que o governo queria com a Portaria 303 e a atuação da ministra Gleisi Hoffmann era satisfazer os interesses do agronegócio equivocou-se completamente no método, que além de inconstitucional é inviável politicamente, e só contribuirá para desgatar sua imagem. Se não é possível que ela perceba que por força constitucional tem o dever de garantir as terras para os povos indígenas que ainda não tiveram seu direito reconhecido, terá de perceber isso pelo frio cálculo político do ônus que causará ao seu Governo e à sua imagem insistir em medidas inócuas e protelatórias.